quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Miscelânea

No que toca aos primeiros trinta anos do século passado, pode-se afirmar que a Confraria está bastante bem documentada: há o Livro do Irmãos, o Livro de Inventário, dois «livros de contas», além dos estatutos e algumas sentenças. Um ou outro documento ocasional, sobretudo escrituras de dinheiro a juros, podem-se procurar nos livros do tabelião do Couto de Fralães, instituição florescente nesta altura. Entre os anos trinta e os anos setenta, a informação escasseia, limitando-se a pequenos fascículos dos orçamentas anuais (conservam-se perto de uma dezena), a listas dos devedores das Confraria a quem se deveriam cobrar juros, alguns maços de recibos do tesoureiro e um ou outro documento mais original, como é o testamento do pároco João António Martins Rodrigues de Carvalho, que em 1855, deixou à irmandade alguns paramentos.
Em miscelânea, vamos seleccionar, destes dois períodos, alguma notícias mais curiosas.
Comecemos por falar dos confrades, os irmãos. Em Monte de Fralães, já de antes de 1800 toda a gente estava inscrita como irmão, os mais deles remidos. Ao menos é o que parece deduzir-se de certo passo de um «termo de composição» de 1799, quando se fala «dos irmãos e moradores da mesma freguesia que, sendo todos juntos nesta apela, assentaram e concordaram ser todos irmãos, para o que foram assentados no livro respectivo, pela entrada remida: os novos, duzentos e quarenta, e os que tinham sido riscados não deram coisa alguma, por o terem feito». De Viatodos, também quase toda a gente deveria estar inscrita. O registo de 1800, para esta freguesia, faz-se por lugares, tal era o número de confrades (como nos róis da décima, do concelho). Também havia muitos irmãos de Silveiras, embora a proporção e cresça por comparação com Viatodos. Das outras freguesias pertencentes ao «giro», algumas merecem destaque: Chorente, Góios, Macieira, Negreiros, Grimancelos. Nas restantes, é menos significativo o número dos irmãos. Em 1818, chega a inscrever-se como irmã uma senhora de Fão. (Em 1893, haverá três irmãos naturais da «Vila de Fão».)
Uma olhadela agora ao inventário feito em 1800. Começa assim:

Item, uma cruz de prata, com a sua vara da mesma, de prata;
Item, uma cruz de prata, do guião, com a sua manga de damasco branco;
Item, um turíbulo e naveta de prata, com sua colher;
Item, uma vara de prata, do juiz
Item, um cálice de prata, dourado, com sua colherinha e patena;
Item, um vaso que está no sacrário, de prata;
Item, um vaso de estanho fino;
Item, duas coroas de prata, uma da Senhora grande, outra da Senhora pequena; (...)

Todos estes objectos, à excepção da vara do juiz, que se vendeu, foram roubados, ou num assalto feito à capela em 1803 ou 1804, ou pelos invasores napoleónicos. Em notas marginais ou entrelinhadas, lê-se: «Esta foi pa o Geno» ou «foi pa os franceses». No primeiro caso, pretenderia dizer-se: «Esta foi para Junot».
Havia mais prata e estanho, mas a prata, se não fora roubada antes, foi toda «para o Junot». (Provavelmente, foi para o «Maneta», o general Loison, e não para o Junot.)
A primeira das cruzes de prata, bem como a coroa do mesmo metal da imagem grande eram decerto as que já vinham referenciadas em 1650 e seriam tão antigas como a Confraria.
Posteriormente, aí por 1820, D. Mariana Umbelina, de Ruivães, ofereceu novas coroas de prata para as duas imagens da Senhora da Saúde.
A gestão da Confraria, à parte as actividades de carácter estritamente religioso, era sobretudo a gestão dos seus recursos, magros para as despesas. Ligada a essa gestão, andavam de mãos dadas a burocracia e a justiça. Apresentando contas à jurisdição real, em Barcelos, e mais tarde em Braga, no Governo Civil, não raro as despesas não recebiam aprovação. Particularmente curioso é um caso ocorrido num dos primeiros anos de 1800: o juiz trouxera música para animar a festa; pois o «senhor Fidalgo» (o Conde de Cavaleiros, com certeza) obrigou o juiz a pagar de seu bolso tal extravagância.
O recurso ao tribunal verificou-se muitas vezes por insolvência dos credores. Conservam-se algumas «sentenças» que tiveram esta origem: uma, muito extensa, teve a ver com um credor afidalgado, natural de Vilarinho das Cambas; duas outras, relativas a credores mais da vizinhança, são da autoria do juiz do Couto de Fralães; finalmente, a última foi decidida pelo juiz de paz do Distrito de Viatodos. Conservou-se também a «sentença dos altares», eclesiástica.
Sem dúvida curioso também é o destino que, no ano económico de 1852/53, a Confraria deu a 50 réis. No rol das despesas, lê-se a dado passo: «Idem, para as despesas da vinda de S. Majestade, que Deus haja em glória, quando passou por aqui, 50 réis». Não sabemos o que se terá pago com este dinheiro, mas ficou ao menos o registo de que D. Maria II (que faleceu em 15.11.1853) visitou o santuário da Senhora da Saúde.
Cremos que é também a este santuário que se refere Camilo quando fala de uma peregrinação à Senhora da Saúde em certa página do seu livro sobre a Maria da Fonte.

O pároco João António Martins Rodrigues de Carvalho, que paroquiava Monte de Fralães pelos anos quarenta do século passado, contemplou a Confraria de Nossa Senhora da Saúde. Vejamos em que termos o fez[1]:

Declarou que deixa todas as suas cortinas que tinha de seda e damasco, que existirem ao seu falecimento em seu poder e que são duas, para a Confraria da Senhora da Saúde da dita freguesia de Fralães, com a condição e obrigação da dita confraria as emprestar sempre enquanto elas durarem somente para servirem nas festas que se fizeram na capela de Santa Marta de Coura, para servirem nas festas do Santíssimo Sacramento de Nine e da Senhora do Rosário de Nine (...) e deixava à dita Confraria da Senhora da Saúde (...) os seus paramentos ricos, que são a vestimenta, duas dalmáticas, duas estolas, três manípulos e uma capa de asperges, tudo com galões de patilha dourada, e também lhe deixava (...) o seu gibão de lã, de cor branca e vermelha, que tudo servirá igualmente nas festividades do padroeiro, S. Pedro (...) Página do testamento do P.e João de Carvalho

Não nos era difícil continuar a recolher elementos de informação dispersos por este ou por aquele documento. Por o acharmos desviado do objectivo que nos norteia, propomo-nos terminar aqui a nossa «miscelânea», chamando apenas a atenção para um significativo restauro feito na torre em 1855. A obra, arrematada em hasta pública, foi adjudicada a um pedreiro residente em Silveiros, mas natural da Galiza, que assinava Jose Corbal y Piñero.

De 1870 a 1900: o período áureo

Não restam dúvidas que, por volta de 1870, a Confraria entrou num período de expansão.
Em 1864, haviam-se actualizado as cotas de entrada dos irmãos; em 1873 e 1877, fez-se o inventário de todos os haveres; a partir de 1894, há livros de contas e de actas. Para além da elevação do nível cultural que se nota na escrituração, a prova real dessa expansão colhe-se no Livro dos irmãos de 1893. Enquanto nas décadas de meados do século os irmãos anuais rondavam os 500, em 1893 são 729, cifrando-se os remidos em 249, o que perfaz 978. Ao virar do século, deviam totalizar 1100. Como explicar este surto de crescimento?
Cremos que a partir de determinado momento se tornou chique estar filiado na Confraria; paralelamente, terá havido também um esforço de doutrinação, o que parece justo deduzir-se de haver vários sacerdotes entre os irmãos[2].
Mas tentemos ver as coisas mais em pormenor.
Durante o século XIX, foram os seguintes os senhores de Fralães: a Condessa de Cavaleiros, até 1828; o Conde de Terena, José Maria Brandão de Melo Cogominho Correia Pereira de Lacerda e Figueiroa, agora mencionado, e que foi governador civil do Porto; o Marquês de Terena, Luís Brandão de Melo Cogominho Correia Pereira de Lacerda e Figueiredo, que casou com D. Maria Ana de Sousa e Holstein, filha do Duque de Palmela; a Marquesa de Monfalim e Terena, D. Eugénia Maria Filomena Brandão de Melo Cogominho Correia de Sá Pereira de Lacerda do Lago Bezerra e Figueiroa, nascida a 21/05/1840 e falecida a 30/05/1900, que casou com o tio materno D. Filipe de Sousa e Holstein.
Há-de ter pertencido ao Marquês de Terena e esposa, a iniciativa da visita de «S. Majestade» à igreja da Senhora da Saúde; se de facto é, como se diz, da Marquesa de Monfalim o túmulo que se encontra frente à pia baptismal dessa igreja, isso atestaria a devoção de tal Marquesa à mesma Senhora. Até há pouco, distribuía a Confraria umas estampas em que se chamava a pequena igreja de Monte de Fralães «mosteiro». Essa enormidade vem de fins do século passado e há-de ser mais ou menos contemporânea do soneto de Barbosa Campos com que iniciámos este capítulo.
Actual Igreja Paroquial com a sua torre

Parece ter vicejado então por estas paragens uma vaga fugaz de romantismo tardio[3]. A Casa de Fralães, agora restaurada, tão antiga e com pergaminhos de tanta nobreza, que Camilo fizera entrar em pelo menos duas das suas novelas, agora possuída por uma marquesa, estava nas condições ideais para o alimentar. Os mais velhos e saudosos do passado ainda recordariam os bons tempos do Couto de Fralães e da Câmara Municipal.
A par desta vertente eventualmente mais passadista da elite cultural das redondezas, o culto padre João Rosa lideraria uma outra mais sintonizada com o espírito positivo do momento. Paroquiando Monte de Fralães entre 1874 e 1876, procedeu ao restauro, nos aspectos mais urgentes, da antiquíssima igreja paroquial, lançou judiciosas anotações no Livro dos capítulos, organizou o Livro dos legados e redigiu o inventário de 1877. No Livro dos irmãos de 1893, vem inscrito por Monte de Fralães. Não sabemos se terá tido alguma parte na vinda de M. Sarmento ao Monte d’Assaia, em 1877 ou 1878, mas é sabido que, em 1898, foi elemento activo nas formalidades legais da aquisição para a Sociedade patrocinada por aquele vimaranense dos que hoje são os dois monumentos nacionais existentes no referido monte.
D. Filipe de Sousa e Holstein foi tio e marido da Marquesa de Monfalim, D. Eugénia Maria Filomena Brandão de Melo Cogominho Correia de Sá Pereira de Lacerda do Lago Bezerra e Figueiroa. O casal morreu sem geração.

Continuando a nossa tentativa de vislumbrar as circunstâncias em que a Confraria se lançou para o seu momento mais brilhante, não podemos deixar de registar que em 1873 e anos seguintes foi juiz um tal Simão Maria Carreiro de Vilhena Abreu e Lima. Não é que saibamos muito sobre este senhor, que residia em Monte de Fralães; mas a sua escrita parece denotar uma cultura bastante acima do vulgar e foi ele quem esteve à frente da irmandade ao tempo em que o padre João Rosa paroquiava a freguesia. No registo de 1893, aparecem com assinalável frequência «donas» — o que era raríssimo no de 1800. Texto autógrafo do P.e João Rosa

Entre as pessoas gradas da irmandade contar-se-iam com certeza os Mirandas, os Neivas e os Oliveiras, de Viatodos. Em finais do século ordenou-se um padre Miranda e um padre Neiva. O padre José Garcia era filho de José Joaquim de Oliveira, o compadre a quem o padre Rosa dedicou a Cavalgada. O reitor de Viatodos, Luís Augusto Chaves, era irmão remido e presidiu a algumas mesas nos anos que antecederam 1900. Por esta altura, havia alguns irmãos idos para o Porto ou de lá vindos. Entre os que de lá vieram, estavam o comerciante de simpatias maçónicas Sebastião Moreira e o industrial e comerciante Luís Vilares.
Às pessoas que referenciámos e, evidentemente, a muitas outras cuja acção desconhecemos, se há-de ter ficado a dever o momento que assinalamos de expansão da Confraria — o seu período áureo, pois que durante ele, ricos e pobres das freguesias vizinhas se juntaram, formando um grupo tão grande e tão humanamente variado como, depois dessa geração, se não voltou a reunir.
Eis a lista da distribuição dos irmãos pelas freguesias da respectiva naturalidade, feita a partir do registo de 1893.
[1] O texto, como se vê, não é muito claro, mesmo com uma pequena correcção que se introduziu. Um termo feito pela mesa que recebeu esta doação explicita melhor as coisas: o padre Carvalho deixou estas alfaias à Confraria de Nossa Senhora da Saúde, mas esta tem a obrigação de as emprestar para as solenidades religiosas que se reali­zarem em Nine.
[2] Em Viatodos, havia uma confraria eclesiástica, certamente bastante activa, desde longa data, a Confraria da Senhora das Neves. Pensamos que se filiavam aí quase todos os sacerdotes das redondezas. Aliás, era nesta freguesia que, desde o século XVIII, tinham lugar as conferências de Moral, a que ocorriam os eclesiásticos de Monte de Fralães, Grimancelos, Minhotães e, claro, os de Viatodos.
[3] Inteiramente a despropósito, ao modo de quem experimenta a pena, alguém escreveu, cerca de 1875, num livro de inventário: «Nada ha mais bello que amar».
O soneto de Barbosa Campos foi recolhido de Soeiro Mendes, A Ver Terras. Soeiro Mendes era o Abade Sousa Maia, pároco de Canidelo, Vila do Conde.

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